quarta-feira, setembro 26

. amanda .

amanda marcou o leito do rio tempo
com pegadas de contracorrência.
mas seus cabelos cresciam a desventura
e se confundiam a nascente e o mar.

segunda-feira, setembro 24

. passing by .

aos poucos, vou me redendo ao tempo.
deixo de pensar nos cabelos que crescem
e presto atenção na pele que se esvai.

as minhas mágoas se transformam em ficção.
penso se os meus amores foram reais
e quanto há de invenção na felicidade íntima.

todos os sorrisos de que me lembro são belos,
só reti os belos de pessoas que nem sempre foram
mas com o tempo sempre serão.

a memória ajuda: se desfaz.

sábado, setembro 22

. fotografias .

para aninha,

vou passando as fotografias.
você começa com um penteado diferente,
mas já teve, há tempos atrás, o cabelo de hoje.
a sua pele sempre foi uma piscina
e seus olhos, uma antena resistente a tempestades.
você não mostra, mas fotografa torto os adeus.

as fotografias mentem photoshops,
o preto-e-branco não deixou de acontecer
o seu coração preto-e-branco.
as cores saturadas é um risinho
de quem deixou o comercial de lado.
você foi capturada pelas fotografias
que deixou de tirar.

você já esteve em tantos lugares.
há tantos céus, luzes de postes,
coisas inanimadas das cidades, roupa de frio.
eu me lembro de uma cinelândia e de um arpoador,
infinitos.
mas o foco... ah, o foco ficou perdido.

sexta-feira, setembro 14

. folhas secas .

esperando por alguém em uma calçada qualquer, fiquei olhando as folhas secas se desprendendo dos galhos e se arremessando ao chão. algumas mais anatômicas alçavam pequenos vôos. outras mais concentradas mergulhavam e se espatifavam.

e aquela armação de galhos sendo revelada me soou alguém que talvez tivesse conhecido, que perdera suas memórias ao sabor das gravidades e dos ventos. mas que resistia com dignidade a cabeleira lúdica dos galhos.

e na solidão de uma calçada qualquer, alguém que viesse ter sombra.

sábado, setembro 8

. capítulo 4 : alikan ::

alikan é o nosso terceiro projeto conjunto. chegou a nós abstrato, pequena massa chorosa e peluda. os olhos trágicos e operísticos, mas as orelhas antenadas ao ambiente. assassina baratas e outros insetos a revelia das consciências, mas conhece o amor.

este sim, é o nosso primeiro projeto comum: o amor. o segundo, joana imprime em cartazes e cola em paredes: uma casa. alikan é quem nos traz de volta quando precisamos fazer compras, pagar impostos, separar o lixo e escolher a marca da comida. é alikan quem determina as naturezas do jardim: há o espaço para brincar e espantalhos em formas esquivas para que não estrague a planta que ainda não é tão planta. no canto ignorado por nós, cresce alecrim que é mato mas não tem as consequências de um. alikan o descobre, pensamos em temperos e molhos.

nesta hora, adotamos alikan como nosso terceiro projeto comum: ele ajudará a descobrir as coisas que nossos sentidos falham. e esperamos que como ele, os dois primeiros projetos deixem nossos corpos e procurem sua própria natureza.

alikan me olha: "esta casa se fechou quando partiu, au. só há uma maneira de estar dentro dela, au". o pelo de alikan se torna mais sedoso e longo. vaii até uma parte da janela na qual há pequenas estruturas - a grade, o esquadro, um pilar de madeira - que eu utilizo para subir no telhado para pegar pipas que caem para devolver aos meninos da rua. alikan sempre latia para quem tenta além de mim.

quarta-feira, setembro 5

. capítulo 3 : a janela .

as cartas me soam como veias abertas. mesmo que em vida nunca sentisse o sangue se sair com tanta agilidade, ao tirar as cartas de seus devido envelopes uma sensação esvaiçamento tomou-me conta. como se uma friagem me tomasse as calorias e a temperatura a baixar fosse sinal de que uma ventania está me levando, está me perdendo.

deito-me no chão do quintal. o muro inútil vai sumindo e se tornando ruina. alguém, em algum tempo prático, achou conveniente que fosse demolido para que entrasse mais um automóvel. vejo a porta de entrada em mancha desfocada. esforço-me: está fechada.

levanto-me com dificuldade. as roupas dos viventes em terra de viventes pesa uma vida. caminho até a porta, acerto: está trancada. penso em atravessá-la, mas primeiro preciso saber se há alguém em casa. vou até a janela.

peço que desperte. e a casa abre seus olhos. todas as janelas se abrem em vacilo primeiro e total despertar depois. a poeira marca as luzes solares. agora o calor da superfície da pele condena o frio das cartas abertas. é um inicio de sentir-se em casa, suponho. mas não consigo entrar.

passo por todas as janelas: a sala, os quartos, o corredor, o banheiro. não consigo penetrar nestas entranhas. o nervosismo me faz ainda mais pressa. não compreendo o segredo para a passagem para dentro. é minha casa ou foi. não há ninguém que se incomode. a casa está abandonada.

a casa está só. ouço um latido: é alikan.

terça-feira, setembro 4

. capitulo 2 : as cartas .

sobre um muro inútil estão depositados algumas cartas. serão as mesmas que deixei quando parti? lembro-me de ter registrado a vontade de ficar e a suposta saudade que teria de tudo e de todos. estão todas elas, organizadas por ordem alfabética do remetente. não são as minhas, enfim. repasso os olhos nas letras e nomes de quem enviaram. e depois, leio o destinatário: sou eu mesmo.

há muito deixei de receber cartas ou qualquer tipo de mensagem com notícias sobre o bem estado. havia um pacto formado em que a falta de notícia era a notícia boa. são as notícias ruins que merecem a concretização das palavras; é o horror que deve ser descrito e informado.

eu fui me tornando uma notícia boa aos poucos. ao ponto de minha desintegração não ser percebida. o esquecimento não é total, fico assim como uma sensação. perco-me na noção de espaço e tempo. hoje resido em algum canto obliquo e pendente das memórias. mas serão más notícias estes papéis então?

os ventos se acalmam. o bloco de cartas que sempre ameaçava cair se estabiliza. penso se tenho o direito de abrir a carta. penso se sou a pessoa a quem haviam destinado as cartas. porque ler aquela notícia não fará diferença já que a minha matéria não interfirá nas decisões dos viventes.

abro, com uma respiração que pensava já ter me abandonado.

é de uma amiga que há muito não nos falamos. avisa-me do nascimento e agora batizado de seu filho. deu um nome parecido com o meu e por isso se lembrou de mim. convida-me para as festividades. vejo a data. muitas semanas, meses, anos.

a respiração que está me voltando traz também a caimbra e o cansaço. sento-me no murinho inútil e vou abrindo todas. abro muitas em um dia, mais que uma vida. vaga pela minha cabeça: saberia ainda escrever para responder? atravessaria a caneta a minha mão?

domingo, setembro 2

. capitulo 1 : a árvore .

sou como um fantasma que volta a velha casa: tento atravessar o que suponho que as paredes tenham me impedido.

já no primeiro embate, uma desvantagem: ao girar a chave do portão, ela se quebra provando que há o perícivel nos metais.

a árvore grande da escola em frente a casa ainda continua lá, ereta e decidida. engaram-se que sua velhice mataria os estudantes. muitos deles passaram e sentem saudades da grandeza, porque eles mesmo não fizeram os seus grandes sonhos. estudei naquela escola onde a árvore já fazia sombra sobre o teto. seus galhos vacilantes já sucumbiram a ventanias. pude, em são paulo, ver as ondas de um mar clorofilado.

pensei em tocar a campainha, mas não havia quem atendesse. atravessei o portão sem dificuldades. é próprio dos que sonham cinema as elipses. eu fiz questão de me apoiar no tempo morto e tornar longo e significativo o atravessar do portão. a velha árvore me recebeu com sombras animadas, cheio de assovios.

naquele momento, não sabia se mantinha a lembrança dos viventes ou se abrigava nas casamata das memórias o olhar saudoso da árvore.