terça-feira, março 31

os anos

seu onofre não tinha medo do diabo, embora seu encontro já tenha sido marcado. aconteceria depois de muita dor e pouco sangue. e seria este o preço dos caminhos que escolheu.

só havia uma pessoa, uma mulher, que choraria por ele. ela, seu onofre sabia, estava salva.

ela tinha o nome do amanhecer, hora impossível para o diabo que o próprio revelou a seu onofre em troca de sua alma.

e nas últimas horas da madrugada, ele se levanta e vai sentar na varanda para pensar nos dias de vida e nos anos de morte.

. dora .

a pequena dora observa com atenção o corrego fétido por onde se esvaem as tristezas do bairro. está a lembrar o que seu avô lhe dizia das coisas que se movem:

-- todos vão embora.

e lembra que também seu avô havia ido embora. e que apesar da idade de seus dedos, está ela em um turbilhão de coisas que voltam sem terem partido.

e que talvez ela seja um dos lugares para onde todas as coisas esvaem.

. maia .

havia uma nuvem que se chamava maia. sonhei por anos com sua consistência e por vezes acordei no ar. maia desistiu de mim há alguns anos até que semana passada a encontrei dispersas entre inúmeros focos de tempestades que derramavam pela cidade.

envolveu-me com certo pudor em meu corpo e sussurrou nuvem:

-- agora que te encontrei me refaço.

penetrou em meus cabelos e hidratou meu espírito e nunca mais chorei em vão.

banho

eu beijava suas costas e fiz piada de suas sardas. ela me pegou no canto do olho.
-- tomei banho de noite estrelada.

segunda-feira, março 30

tempo

sempre tive cabelos brancos. um fio aqui, outro acolá. tem gente que acha charmoso. como tenho espelhos ruins e pouca visão periférica, quase não os reparava. todavida, hoje, sobre o travesseiro havia alguns fios. eu os tinha, agora eles caem. nunca havia acontecido de cairem tantos de uma só vez.

abri a janela e os joguei. assim seguem naturalmente o fluxo natural do tempo. e eu os imagino em algum ninho de pássaro ou se predendo em algum cão sem lenço e sem documento.

domingo, março 29

violino no metrô

ele carregava o case com o violino dela em uma mão e na outra a levava a escola. estavam juntos há 6 meses e ele a convencera de voltar a estudar. não tocava naquela maleta havia mais de anos, mas sempre que ela falava sobre a música, tinha olhos marejados. ele então decidiu que ela teria que voltar a estudar.

ela estava com medo. por vezes, perdia a noção da estação por tão absorta que estava. ele a guiava pela cidade sob a terra.

perdi a vista deles em uma baldiação. não sei se ocorreu tudo bem. mas lembro do gesto com que ela pegou o braço dele: ensaiando um dedilhado.

sonhos

sonhei que todos os personagens que já tive, reais ou não, se reuniram para me dar conselhos. havia os que se exaltavam; outros que gesticulavam serenamente um "tudo bem". outros não se preocupavam e ainda havia os que já esperavam o pior.

eu os escutei com atenção, primeiro para me distrair de uma dolência que me atacou nestes dias. depois porque pude ouvir o que havia a seguir quando eu os abandonava a narrativa.

aí eu comecei a contar a minha história. todos me escutavam com atenção porque gostariam de saber quando eles entraram na minha vida.

e chegando aqui, não sabia mais o que dizer.

- então escreva! alguém gritou ao longe. e acordei.

sábado, março 28

falta de sorte

acontece que amor é sorte e a não-correspondência é falta de.
depois cultiva-se o amor, o que não tem nada a ver com sorte.

há maneiras de se estar mais propêncio a sorte,
e outras tantas para a cultivância do amor.

acontece também dos sortudos serem pouco amorosos.
e dos azarados serem bastante.

e há os que nada disso conhecem, sabem ou reconhecem
de tanto amor que há e de sorte que acontece.

ciranda

as cirandas me comovem tal qual violino choroso a beira da desafinação.

. vida .

a gente se desencontra com tantos mapas... e vai se encontrar sem querer em dias nublados.
e a gente lembra mais dos dias nublados do que dos mapas.

. fôlego .

priscila escreveu um longo parágrafo, quase sem pontos e vírgulas, do que havia acontecido consigo naquela manhã. queria que quem lesse também ficasse sem o fôlego que faltou a ela quase perto do almoço.

depois, escreveu versos ritmados para que também soubessem que ela havia encontrado felicidade ao sentar-se em um banco para escrever.

quarta-feira, março 25

car crash

a mulher que olha em pânico me atravessa com seus gritos. sei dos gritos pelo estampido de ar que chega em meu rosto. não escuto coisa alguma. estou deitado e percebo alguém protegendo o meu pescoço. quero retribuir com um gesto de buchecha, mas não consigo me mover.

a multidão de curiosos começa a bloquear a claridade do céu... como o céu está bonito especialmente hoje. tão bonito que dá vontade de chorar, mas me resguardo. alguém está cortando minha camisa e me toca o peito com um cuidado de compaixão. das suas mãos, vejo sangue. acho que é meu. penso se há outros que estão na mesma situação, mas não consigo virar o pescoço.

gostaria de lembrar o que aconteceu, mas há um resquício de tristeza em alguma parte de mim. talvez estivesse muito absorto e tenha causado um acidente. espero não ter ferido mais ninguém. quero recuperar meu último pensamento e começo a me irritar com a dificuldade. há alguns meses esse esquecimento súbido havia se apoderado de mim de forma medicinal. mas agora é uma peça que me faz falta danada.

já posso ver no rosto de alguns as luzes da sirene. não consigo avaliar se foram rápidos, sei que estão ficando intensas. azul, vermelho, azul, vermelho. essa alternância acelera minha mente, começo a ver pessoas que conheci. passam rápidas, quero dizer algo para umas, outras quero apenas um sim. perdi algo, sim, perdi, mas não consigo saber. minha boca está seca, um bombeiro se esforça na simpatia, parece uma pessoa boa. talvez tenha uma familia esperando por ele. deve voltar sempre bastante cansado, mas feliz pelas coisas bonitas que faz.

o que eu tenho feito de bom? elevam-me e estou em movimento. maca. ah, o céu... ele está tão bonito que meu coração dispara. um outro bombeiro corre para me aplicar alguma injeção. tento lhe dizer que não, porque sinto meu coração como se estivesse apaixonado e há muito não o via assim. penso em alguém que vai me fugindo. não vá! me espera!

se eu sair dessa, quero jurar um monte de coisas boas das quais vou me orgulhar. e talvez alguém se orgulhe de mim também. minha cabeça inclina um pouco e sinto a lágrima de um olho cair no outro.

quero chegar logo.

selo

escrevi uma longa carta para minha irmã contando as boas novas.
a quantidade de selos me surpreende: nenhum.
será que ela vai ler com a atenção devida?
será que eu escrevi com a medida do amor?

vida

na rodoviária, há um corredor cercado por ônibus que chegam e outros que partem.
atravesso em um turbilhão de desejos.
chegando no último portão, viro-me o corredor não é o mesmo.

soul

escreva-me um carta contando segredo.
estou preparando uma fogueira.

terça-feira, março 24

amor

prendi a respiração, forçando-me esquecer o que é respirar.

segunda-feira, março 23

broken heart

corações partidos ao som de canções sobre corações partidos.

quarta-feira, março 18

uns versos para jezebel

jez, alguma orelha
escrita para te impressionar.
criava minibiografia
que ajudasse no preparo
e vontade das palavras
a serem ditas.
quem se impressiona
com orelha, jez? você.

a sua mania
de ler tudo entrecortado.
jez, você lê tudo errado,
mas cria outra compreensão.
lado sem lado outrora,
opinião facultativa
agora tão necessária
para os textos perdidos
dos homens encontrados.
jez, você me faz pensar.

escrevo para pensar em você.
jez, sei que você lê quando pode.
e quando pode também avisa
que faltou coragem e persuasão
e sobrou comiseração e dedos.
mas amor ficou no ponto
porque amor é pontual, não é, jez?
amor são todos os pontos
que nos encontramos nos outros
e os outros se encontram
nos nossos furúnculos.
jez, às vezes você tem bom gosto.

agora assine este poema,
porque o que você me enviou
eu já assinei. metade da orelha
é sua, a outra metade fica com
a biografia de alguém pontual.
ah, o amor, jez, a gente deixa
para quando tivermos tempo
de nos encontrar.

marcio e jezebel

segunda-feira, março 16

2 de janeiro

"não beba essa água
tá lisa demais
essa água tem veneno
e veneno não volta atrás.

no barco 2 de janeiro
sentindo muito aflição
aperto do mundo inteiro
esmagando meu coração.

não vá embora
escuta a toada
ando na beira da praia
anel no dedo eu quero um."
(comadre fulozinha)


homem ou máquina, seja quem for a sorte ou perdão, há de se reconhecer aquele que falta. não a metade exata, semente cá igual a semante lá, mas o céu pulverizado que enche os pulmões do qual se separa e volta a se apegar feito os anos, as lembranças.

que a água sem veneno já existiu, isso não tem quem negue ou fira. mas já também vendeu-se em tantas partes antítodo para o veneno do tempo que já se é envenenado antes mesmo de beber. para o antítodo há volta.

homem ou máquina, sorte ou perdão, todos queremos antítodo.

porém, desde que o barco corre o ano, começa o desfiamento do mar. o veneno nos faz sonhar que à deriva talvez corramos o risco de encontrar o que nos falta enquanto enquanto faz tempêro do coração em pilão.

casar na praia é casar com o tempo imenso. é muito romeu e julieta, mas vira mar.

domingo, março 15

a million parachutes

coloquei no ar um backup das coisas que escrevi nos blogues:

www.casa.parachutesfilmes.net

para quem acompanhava o meu antigo blog e gostava, boa oportunidade para reler. para quem nunca viu, uma chance de ler as coisas que me assombravam de 2003 para cá.

eu fico um pouco impressionado como umas coisas mudam radicalmente e outras nem tanto.

quarta-feira, março 11

faster than

datilografava em guardanapos os amores que teve.

segunda-feira, março 9

. thinking about you .

eu gostaria que você soubesse que ando pensando em você esses dias e não consigo avaliar se é por uma questão especial. talvez porque há bastante mulheres de saias neste calor e a sua blusa se parecia muito com uma. e nesta cidade, não é comum que as mulheres usem blusas semelhantes a saias, muito menos saias.

e durante o inverno, cheguei a pensar em você por causa do seu frio peculiar. durante a primavera, foram as flores que me faziam lembrar.

no verão, sosseguei, mas as saias...

domingo, março 8

vida e morte de romana

romana nasceu menor do que poderia ser. mas mesmo assim era uma dobermann e já era temida. quando pequena, brincava com seu dono e tinha apetite moderado. tanto que não comia com desespero, mas aos poucos e com serenidade.

durante a noite, algum rato comeu parte de sua ração enquanto ela dormia e deixou um presente no dia seguinte. romana adoeceu. seu dono a levou a um veterinário que lhe receitou um tratamento longo e dolorido, com injeções dia sim e dia não.

tão pequena, não acharam que sobreviveira. ao final do tratamento, estava fraca mas recuperando.

esta foi o segundo nascimento de romana.

nove anos depois, já cega, romana adoeceu novamente. tinha infecções nas patas e o ouvido saindo pus. enfraquecia-se a cada dia. foram há muitos veterinários, até aquele que lhe salvara a vida, mas nada.

um amigo de seu dono, então, ofereceu para sacrificá-la. não aguentavam vê-la sofrendo. ela tinha 63 anos caninos.

colocaram-na no porta-malas do carro e procuraram por um terreno baldio. dirigiram a noite inteira e só conseguiram parar em um plantão veterinário para que administrassem a morte via injeção.

o veterinário ofereceu algumas estadias de internação a cachorra e combinou-se que se ela ficasse boa, somente seria pago o tempo que ela ficou internada. senão, a injeção seria por conta. o veterinário ainda pediu um remédio vendido em farmacia, remédio de gente, que ele comprou prontamente.

uma semana depois, o dono foi vê-la já com lembranças fotográficas em sua cabeça. talvez tivesse chorado antes, para não precisar fazê-lo na clínica. mas tal foi sua surpresa ao ver romana em pé e respondendo aos seus sons e cheiros.

era o terceiro nascimento de romana. ele a levou para casa e conviveram mais 5 anos.

um noite quente e abafada, ela soltou um uivo forte e tenso. ninguém na casa percebeu, além de seu dono. no dia seguinte, foi chamá-la e não respondeu.

romana viveu 98 anos caninos. nasceu 3 vezes e pode sentir a ofegação de seu dono por duas vezes. sentiu saudades durante uma semana e deixou outras tantas para seu dono.

terça-feira, março 3

. a história das histórias secretas .

quando eu ia contar que beatrice fizera bem ao terminar o namoro, amanda segurou meu braço, impedindo-me. depois aliviou a pressão e pôs a falar a beatrice:

- foi melhor porque ele te amava demasiadamente sem amor.

beatrice sorriu como se o amor fosse justo. e quando se virou, amanda me deu um beijo no rosto em agradecimento.

. diagnóstico .

estava com um sacola de plástica de um laboratório e pensava se comprava na máquina de livros do metrô um pocket sobre diabetes.

segunda-feira, março 2

. na passarela do metrô .

havia dois meninos de tocaia. observavam o andar das pessoas na passarela. de repente, uma mulher correu para pegar o metrô que chegava. via-se ao longe. os meninos correram em sua direção. na catraca:

-- cheguei primeiro!
-- segundo!

faziam graça com as velocidades fragmentadas da cidade.

domingo, março 1

. postcards .

tenho uma coleção de cartões postais. bem verdade, é pequena. não deve passar de 30. mas me é de uma preciosidade impar.

não pela qualidade das fotos que são normalmente turísticas demais. nem pelo texto que é escrito muitas vezes na correria (parece-me que o estrangeiro é muito mais veloz que estas bandas). os selos e carimbos tem sua graça, mas também não me impressionam tanto.

podem pensar que é pela esperança de que eu também possa um dia enviar cartões postais de lugares tão incomuns de mim. de que há todo um mundo lá fora a ser desbravado pelos meus olhos e estes cartões são a prova da materialidade dessa esperança.

e também não é pela lembrança natural. normalmente peço com indelicadeza às pessoas que vão para fora que me envie um postal. e elas por carinho, simpatia, respeito ou amor acabam me enviando.

gosto da minha coleção de cartões postais porque, de alguma forma, elas provam a minha existência perante este vasto mundo. são como testemunhas. mas fazem esta comprovação não de modo óbvio.

como se também não fosse óbvio o que sou.