quarta-feira, setembro 23

. ela mesma .

eu sempre peço para as pessoas que vão para longe que mandem postais. talvez eu acredite que fazer algo tão clichê seja um modo de observar o mecanismo do mundo funcionando. as centenas de cópias da mesma foto com legendas. o espaço do selo. a pequena área para contar sinteticamente o que os olhos acreditam eterno. um pequeno suspiro para pensar nas palavras que melhor serão recebidas pelo remetente. o carimbo indicando a moeda local.

é um pedido para que pense em mim em um momento tão singular na vida. é também uma oportunidade para quem pudesse se sentir meio tolo em enviar cartões postais em época de imagens digitais. gosto de pensar que todos os postais querem me convencer para partir também.

mas a minha cabeça não é tão boa para essas coisas. viajo muito na cabeça e coração. mas o espaço das fronteiras me angustiam um pouco. acho que é porque me dá uma sensação ainda maior de que compreendo muito pouco tudo que me rodeia.

viajo amanhã. nem é tão longe. o lugar e a pessoa. estou um pouco ansioso, confesso. é um mundo que conheço mas nunca vi. tenho comigo que cumpro uma promessa e gosto de pagar promessas quando é um jeito de acredita melhor.

vou passar em bancas para ver postais. perguntarei preços de selos.

mas chegarei antes.

sábado, setembro 19

correspondência

no amor, não sei responder cartas.
e quando escrevo, dificilmente são respondidas.

domingo, setembro 13

. heartland .

um coraçãozinho que morava só saiu para rua para dizer que era sua também aquela rua. que, embora não parecesse, aqueles postes também iluminavam a sua volta para casa segura e como todas as outras casas, a sua também tinha um número para identificação dos correios e que também poderia ser referenciado como a casa da rua tal perto da praça tal.

aliás, aquela rua daria numa praça que também ele adentraria e que também ali estariam outros coraçãozinhos como ele, ávidos para dizer as coisas que atormentam o verbo e o pertencimento.

e que dentro dos coraçãozinhos haveria seres humanos distraídos e ignorantes ao amor.

quinta-feira, setembro 10

marcela

marcela aproveitava o intervalo entre suas crises de asma e amores para transformar verbos intransitivos em transitivos.

terça-feira, setembro 8

tempo e voz

o homem trouxe café naqueles copos plásticos com tampa. com leite em espuma para ela, puro para ele. sentou-se ao lado dela naquele banco voltado para uma vista deficiente da paisagem que se imagina tão bonita. a mulher acabara um telefonema e estava enviando uma mensagem, provavelmente para seu secretário.

-- um minuto, marcelo.

ele esperou pacientemente. tomou um pequeno gole de seu café. assim que ela terminou, também abriu a tampa de seu copo e com um sorriso de agradecimento também tomou seu gole cumprindo um tratado qualquer sobre cafés em comum.

-- diga, marcelo.

ele pegou sua mão e ela teve uma hesitação. o telefone dela tocou e ela se achou salva. levantou-se e foi para um canto. alguém a chamava com urgência no trabalho. ele compreendeu e apontou o ponto mais próximo de táxi.

-- venha a minha casa semana que vem e conversamos melhor.

ela o abraçou fortemente a medida que achou que pudesse compensar uma falta. satisfeita e aliviada, foi embora.

ele também não se incomodou tanto. teria mais tempo para ensaiar seu pequeno pedido. bebeu um pouco do café que ela havia deixado e começou:

-- gostaria de falar das coisas que tem me atormentado, das minhas inquietações sobre a natureza do mundo. como conversávamos antes. na época que tinhamos incomôdos semelhantes e você me ouvia bem. e eu sabia lhe dizer as coisas com humor...

achou-se tolo. talvez fosse melhor escrever. na certa, ela não leria. não teria tempo. desistiu da idéia. levantou-se para ir embora quando o seu telefone tocou. ela falou baixinho:

-- marcelo, não vai acreditar. o motorista do meu táxi tem a voz igualzinha a sua. ouve só.

e colocou o motorista na linha. ele não concordou que tivessem vozes parecidas, mas achou graça da ligação.

-- marcelo, ele estava contando que plantava café, veja só. por que você não me conta mais as coisas?

-- eu...

-- você é engraçado, tenho saudades suas às vezes.

-- às vezes?

e conversaram até que ela chegasse na empresa. e naquela noite conversaram sobre o que lhes afligia. ela dormiu na casa dele porque o dia seguinte era domingo: dia para se inventar tempos.

. janela .

os olhos são janelas.
é por elas que a alma se suicida em lágrimas.

sexta-feira, setembro 4

bela adormecida

no vagão em que viajo, há inúmeras belas adormecidas.

adormeceram pelo cansaço do dia, pelo entusiamos necessário do dia seguinte, pela possibilidade de retomada de um sonho bom com véspera de infinitude, para amenizar dor causada ou sofrida.

seus príncipes, se há, sonham que estão despertos e em vigília pelas suas amadas.

e o beijo está perdido nas escadas rolantes, plataformas de embarque e desembarque, sinais, túneis, avisos sonoros e saídas de emergência.

perdido como inflexão dos que procuram e dos que aguardam.

de repente, uma delas desperta. um pouco sonolenta, estranha a vastidão das que dormem. fica pequena, mas não consegue retomar o caminho do sono. observa as estações: tão longe.

desço no paraíso e a última imagem que vejo é ela enquadrada pela janela do vagão, como um cinema, tentando compreender a linguagem física das respirações e dos sonhos.