domingo, junho 22

verso avulso

amar é retrofoguete.

sábado, junho 21

3 Janelas de Eduardo Galeano

Janela sobre as proibições

Na parede um botequim de Madri, um cartaz avisa: Proibido cantar.
Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem.
Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.

Janela sobre a chegada

O filho de Pilar e Daniel Wainberg foi batizado à beira-mar. E no batizado, ensinaram a ele que é sagrado.
Recebeu caracol.
- Para que aprenda a amar a água.
Abriram a gaiola de um pássaro preso:
- Para que você aprenda a amar o ar.
Deram a ele uma flor de gerânio:
- Para que você aprenda a amar a terra.
E deram também uma garrafinha tampada:
- Não abra nunca, nunca. Para aprender a amar o mistério.

Janela sobre o castigo

Era Natal, e um senhor suíço havia dado um relógio suíço de presente ao seu filho suiço.
O menino desmontou o relógio em cima de sua cama. E estava brincando com os ponteiros, com a mola, com o vidro, a corda e as outras engrenagens quando o pai descobriu e deu-lhe uma tremenda surra.
Até então, Nicola Rouan e seu irmão haviam sido inimigos. A partir daquele Natal, o primeiro Natal do qual ela se lembra, os dois foram amigos para sempre. Naquele dia, Nicole soube que ela também seria castigada, ao longo de seus anos, porque em vez de perguntar as horas aos relógios do mundo, perguntaria a eles como são por dentro.

sábado, junho 14

universo

cada tecla é uma tentativa que lembrar a palavra que foge sinuosa entre os olhos, o ouvido e a imaginação.

. artificios .

roberta queria morrer mas não tinha coragem.

nas inúmeras conversas que tive com ela, sempre tentei lhe pregar armadilhas para que deixasse a idéia e focasse em outras coisas. no começo, eu evitava falar no assunto para que não aumentasse o desejo; depois lhe sugeria formas das mais variadas para conseguir seu intuito. era um jeito de lhe fazer perceber a falta de graça que tinha querer morrer. nestes últimos dias, ela andava muito quieta. depois percebi porquê.

em uma das crises que tivera, pedi a ela que respirasse fundo. desde então, vejo-a sanfonando suspiros. explicou-me depois: quando o ar lhe entra pelas narinas, reconhece em si o céu e o abismo e se joga.

sexta-feira, junho 13

casa

quando renata estava procurando um lugar para morar, queria algo que coubesse em suas economias distoantes. o dinheiro era incerto, a casa procurada também. visitou lugares que respondiam pelo preço e outros que não eram razoáveis. encontrou um apartamento em um prédio onde chegou a morar em outros tempos.

tempos de não lembrar.

o apartamento não cabia em seu bolso, mas havia uma varanda que lhe abriu a imaginação. era arejada e penetrada pelo sol. cabia um estúdio em que pintaria paisagens que não podia ver. é uma varanda-luneta.

alugou-o. as tintas ainda não chegaram, mas o cavalete está montado. o tamanho do que há na tela ainda é maior do que a preocupação de poder pagá-lo.

estes são tempos de lembrar.

palavra-terra

aos poucos, sob a umidade da narrativa, vou-me esfarelando em sentenças e frases e me transformo em palavras arremeçadas das bocas e recebidas pelos ouvidos. vou perdendo o sentido original, quebranto, e falo da morte para semear significâncias e alguma vida.

quinta-feira, junho 12

. alice .

no espelho, o que vejo, é a prata da superfície se transformando em memória.

domingo, junho 8

fotografia analógica

"é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço."
ana c. in recuperação da adolescência

vi fotos de uma pessoa feliz que você se tornou.
as músicas tristes, outrora tão verdadeiras, são histórias de ninar.
acreditar no sempre, nas coisas que não acabam,
foi uma traição medida da qual nos recuperamos:
você melhor que eu.
você que era tão doente na melancolia da mocidade.

agora uso óculos escuros. sou como qualquer um.
no espaço findo de posses e incertezas contabilizadas.
estou perdido no espaço,
à deriva das memórias e emoções.
no fundo deste mar,
sobrevoei em um lindo céu também azul.
a sua foto deixei flutuar:
nesse espaço não há quem se afogue
ou se deixe levar.


. lua .

- é cheia, manja?
- do que você falando?
- influencia cabelo e mar. a gravidade é 1/8 da terra.
- e?
- quando a terra faz sombra a gente chama de eclipse.
- sim. e daí?
- ...
- você anda com insônia, não?
- eu já nem acordo mais.

sábado, junho 7

carta

reli uma carta antiga da minha irmã bruna. escrevia como se fosse rio, perdida no tempo, tintas diferentes, linhas irregulares num papel usado para outro fim. nela falava dos dias, das horas, da paisagem. o televisor ligado, a comida no fogo, o olhar através da janela.

a carta coloquei em outro envelope para que lesse diferente em outro dia. as palavras voltarão ao coração que sempre e nunca é o mesmo.

sexta-feira, junho 6

o quarto do porteiro

fui com ela até seu apartamento para pegar um blusa. fazia frio na cidade. o porteiro vivia no primeiro andar, o quarto reservado aos porteiros que ficava no térreo estava sempre vazio. perguntei a ela se tinham planos para o uso daquele espaço porque o problema de espaço era bastante visível entre caixas, galões vazios de água e jornais velhos.

ela me disse que lá morou um grande homem que foi esquecido pela história e ficou recluso até sua morte. uma mulher que tem uma doença de memória pediu para que deixassem assim e está pagando o aluguel do apartamento do primeiro andar para o porteiro atual.

a mulher conheceu o homem e sua grandeza, respeitou sua privacidade e lhe fez alguma companhia. ela me disse que a mulher que sofria de desmemória usava a presença daquele vazio para exercitar as lembranças. dizia que tinha medo de esquecer a bondade.

acidente

havia uma mulher deitada na rua. alguns trausentes pararam para olhar. um policial pedia que se afastassem enquanto os paramédicos manipulavam a cabeça para se encaixar em um plástico em forma de pescoço.

um fio vermelho e denso correu para o limite da calçada. uma outra mulher mais nova quis chorar mas ao ver a que deitava sorrir, tirou um lenço da bolsa e entregou a mulher acidentada quando estava sendo levada para ambulância que fechou a mão e segurou firme.

era para que ela levasse o perfume de sua filha porque o hospital lhe dava mau-humor.

terça-feira, junho 3

. engenharia reversa .

construir espigões para me jogar deles.